Bartholomeu Lourenço de Gusmão

Pioneiro da Aeronáutica

Bartolomeu Lourenço de Gusmão, por Benedito Calixto (1902).

O padre brasileiro Bartholomeu Lourenço de Gusmão é considerado o pioneiro do balonismo, apesar de não ter construído um balão capaz de carregar um homem ou mesmo pequenos animais. No entanto, em 1709, em Lisboa, Portugal, ele provou – em pelo menos quatro ocasiões diferentes, documentadas – que, inflando uma bola com ar quente, ela elevar-se-á aos céus.

Suas idéias eram extremamente avançadas para o seu tempo. Apesar disso, não conseguiu arrecadar os fundos necessários para construir balões maiores, principalmente devido às intrigas na Corte portuguesa e à influência da Companhia de Jesus, uma poderosa congregação de padres católicos. Os jesuítas não encorajavam o estudo das ciências exatas, dando preferência às ciências humanas. É, portanto, fácil de se compreender que, em um país fortemente influenciado pelos jesuítas, uma descoberta científica como a de Bartholomeu de Gusmão não despertava grande interesse, ao contrário do que ocorria em outras nações, não-católicas. Não se pode também esquecer que o Santo Ofício (ou Inquisição) – na qual os jesuítas desempenhavam importante papel – era forte em países católicos e era um meio através do qual Roma mantinha seu poder. É contra esse pano de fundo que Bartholomeu de Gusmão iria demonstrar sua descoberta.

Ele nasceu em dezembro de 1685, na Vila de Santos, São Paulo, um de doze filhos e filhas de Francisco Lourenço e Maria Alvares. Batizado como “Bertholameu Lourenço”, posteriormente modificou seu nome para Bartholomeu; o nome Gusmão foi adicionado ainda depois, em memória de seu amigo e tutor, o padre Alexandre de Gusmão.

Após Bartholomeu ter completado seus primeiros estudos em Santos, ele ingressou no Seminário Belém, na Bahia, o qual havia sido fundado por Alexandre de Gusmão – a fim de concluir seus estudos em humanidades. Aconselhado pelo Pe. Gusmão, ele afiliou-se à Companhia de Jesus, e iniciou seus estudos para tornar-se padre. No entanto, ele não permaneceu com os jesuítas; alguns autores acreditam que ele não aceitava a rigidez daquela congregação, que impedia os seus estudos científicos. De qualquer forma, Bartholomeu solicitou autorização para tornar-se padre secular e foi ordenado aos fins de 1708 ou início de 1709.

Ele era um homem dotado de grande inteligência e conhecia os trabalhos de Descartes (1595-1658), Leibnitz (1610-1716), Newton (1642-1727) e de seus contemporâneos, Bernouilli (1667-1748) e Maclaurin (1698-1746), dentre outros. Como era usual à época, ele trabalhou em diversos ramos do conhecimento, incluindo matemática, física, astronomia, química e filologia, isto sem mencionar seu envolvimento em diplomacia e criptografia, por ordem do rei de Portugal, D. João V. Bartholomeu submeteu um artigo científico sobre a solução de equações exponenciais à apreciação da Academia de Ciências de Berlim (fundada por Frederico I). Suas habilidades foram reconhecidas tanto no Brasil quanto em Portugal. Durante sua permanência no seminário, ele construiu um mecanismo – provamente baseado em um catavento – que permitia levar água aos prédios no topo de elevações, de forma que os escravos não mais necessitavam carregar água morro acima. Posteriormente, ele construiu um bote para uma única pessoa, movido pelo vento, que movimentava uma roda de pás.

Não se sabe quando ocorreu a Bartholomeu a idéia de se usar ar quente para elevar um balão. Alguns autores sustentam que foi a simples observação de como uma bolha eleva-se rapidamente no ar ao passar por cima de uma fonte de calor; outros dizem que foi observando como partículas elevam-se no ar ao se desprenderem da madeira em chamas. São especulações, no entanto, pois nem mesmo Bartholomeu deixou qualquer explicação.

Outra questão é sobre o local onde ele primeiro testou suas idéias nesse campo – no Brasil ou em Portugal? Existe um documento, Códice CXII/1-18-d, Vol. IV, na Biblioteca Pública de Évora (Portugal), escrito por Tomás Pinto Brandão, no qual se lê o que segue:

“Os seus voos na Bahia,
Algum princípio tiveram,
Que por isso o não quiseram,
Os Padres da Companhia.
Suspeita alguma haveria,
Do que se saberá cedo,
E se em segredo de medo,
Uns padres o expulsaram lá,
Talvez que o recolham cá,
Outros padres em segredo”

Esse sarcástico poema tem suas raízes nas razões pelas quais Bartholomeu deixou a Companhia de Jesus, apesar de não poder ser confirmado hoje em dia. De qualquer forma, os experimentos feitos em Portugal foram documentados e realizados na frente de uma audiência.

Após ter sido ordenado, Bartholomeu de Gusmão foi para Lisboa, e lá apresentado à Corte de D. João V pelo duque de Carvalhal e pelo marquês de Fontes e Abrantes, dois nobres que gozavam das graças do Rei. Lá, ele apresentou uma “Petição de Privilégio” ao soberano, no qual ele mencionava a sua invenção de “um instrumento para voar acima da terra e do mar” e de seus futuros usos: alcançar os pólos Norte e Sul; corrigir os mapas ao sobrevoar as terras; o intercâmbio cultural entre as nações; o socorro às vítimas de desastres naturais ou presas em cidades sitiadas; e o controle efetivo dos mais distantes domínios do Reino de Portugal, ao permitir uma comunicação mais rápida entre o Rei e seus Governadores. Ele solicitava, em sua petição, ser agraciado com o privilégio de ser o único a realizar esses experimentos, bem como a alocação de fundos para construir seu invento. Nesse documento, no entanto, Bartholomeu omitiu os detalhes sobre a sua invenção, talvez com medo de que suas idéias fossem roubadas.

É importante mencionar que Bartholomeu já vislumbrava os futuros usos do balão e, também, da Aeronáutica como um todo, pois o que ele havia mencionado foi mais tarde realizado, seja por balonistas ou por pilotos de aviões. Sua petição ao Rei deve ser considerada como um dos mais importantes documentos na história da Aeronáutica.

Em 17 de abril de 1709, sua petição foi aprovada por S.M. D. João V e Bartholomeu tornou-se professor de Matemática na Universidade de Coimbra, com uma bolsa no valor de 600.000 réis para desenvolver seu invento. No dia 19 de abril, foi publicado o alvará, tornando pública a decisão de S.M.

Bartholomeu também escreveu um ensaio, dirigido ao público em geral, escrito em linguagem simples, no qual ele explicava suas ideias a respeito do voo e de seu invento. Nesse ensaio, ele menciona e explica, através de exemplos, o importante conceito do empuxo. Sua maior preocupação era acabar com algumas suposições bastante exageradas a respeito de seu balão, surgidas após a publicação do alvará; isso era esperado, pois o povo de Lisboa era bastante ignorante dos avanços científicos e tecnológicos da época, como mencionado anteriormente.

Aparentemente, Bartholomeu estava envolvido na construção de seu balão mesmo antes de apresentar sua petição ao Rei, como pode-se apreciar pelo conteúdo da correspondência trocada entre Roma e o seu representante em Portugal, Cardeal Conti (futuro Papa Inocêncio XIII). Também é sabido que a ele foi oferecida a quinta do Duque de Aveiro para lá construir seu balão e que, mais tarde, ele transferiu-se para a quinta do Rei, mais adequada ao seu trabalho.

O Pe. Bartholomeu de Gusmão demonstra seu balão na Sala das Embaixadas perante a Corte de D. João V, em quadro de autoria de Bernardino de Souza Pereira (Museu Paulista).

A primeira demonstração deveria ocorrer no dia 24 de junho de 1709 mas, como o Rei encontrava-se acamado, ela só ocorreu no dia 3 de agosto do mesmo ano. Essa demonstração não foi bem sucedida, pois o balão pegou fogo e incendiou-se; no dia 5 de agosto, no entanto, um novo balão subiu aos ares, e um relatório escrito a respeito, por um Salvador Antônio Ferreira, encontra-se hoje na Biblioteca Nacional em Lisboa:

“(…) A 5 do mesmo mez veio o dito padre com um meio globo de madeira delgado, e dentro trazia um globo de papel grosso, mettendo-lhe no fundo uma tijela com fogo material; o qual subiu mais de 20 palmos e como o fogo ia bem aceso, começou a arder o papel subindo; e o meio globo de madeira ficou no chão sem subir, porque ficou frustrado o intento.

E como o globo ia chegando ao tecto da casa acudiram com paus dois creados da casa real, para evitar o pegar algum desastre, assistindo a tudo Sua Majestade com toda a Casa Real e várias pessoas.”

Em uma outra carta, escrita pelo Cardeal Conti aos seus superiores em Roma, menciona os primeiro e segundo experimentos de Bartholomeu e explicitamente cita que ele tem um corpo esférico de pouco peso (“… corpo esferico di poco peso …”); que é impulsionado por ar quente; e que ele voou verticalmente a uma altura de “due canne” (aproximadamente quatro metros, equivalente a 20 palmos, como mencionado acima). Além disso, e mais importante ainda, cita que Bartholomeu, tendo confirmado que seu invento não traz perigo, está construindo um novo, de maior tamanho (“… onde egli, impegnato di far vedere che non corre pericolo la sua invenzione, sta fabricando altro ordegno maggiore.”). Esses dois relatos confirmam que a invenção de Bartholomeu era realmente um balão, com uma forma aproximada a de hoje, e que ele efetivamente elevou-se aos ares.

A terceira demonstração ocorreu no dia 8 de agosto, no pátio da Casa da Índia, quando o balão subiu aos ares e vagarosamente desceu no Terreiro do Paço. A quarta, e última demonstração, ocorreu no dia 3 de outubro de 1709 e foi relatada por Salvador Antônio Ferreira da seguinte maneira:

“Quinta-feira, 3 de outubro fez o Padre Bartholomeu de Quental, digo Bartholomeu Lourenço, outro exame no pateo da casa da Índia, com o instrumento de voar, que tendo já subido a bastante altura cahiu no chão sem effeito.”

Apesar de suas demonstrações terem sido quase todas bem sucedidas, nas quais ele mostrou que era possível fazer um balão voar, Bartholomeu de Gusmão não foi capaz de continuar com o seu desenvolvimento, nem de encontrar alguém que o seguisse. Pode-se dizer que a principal razão foi a grande expectativa da Corte e do povo portugueses em torno de seu invento; enquanto esses esperavam que Bartholomeu usasse o balão para ele próprio subir aos céus, ele apenas pretendia demonstrar que tal era possível, usando um modelo em escala, que despertasse o interesse em pessoas que pudessem investir em seu desenvolvimento. É uma pena que tal não ocorreu, pois a Humanidade poderia ter tido acesso ao balão 60 anos antes do épico vôo dos irmãos Montgolfier em Paris, no ano de 1783; e, talvez, o desenvolvimento da Aeronáutica tivesse sido mais rápido.

Apesar dos inegáveis feitos dos Montgolfier, deve-se salientar que as primeiras demonstrações públicas, documentadas, do voo de balão foram feitas pelo Pe. Bartholomeu Lourenço de Gusmão, usando praticamente a mesma tecnologia que os Montgolfier usaram meio século após.

Muitos que tenham lido a respeito de Bartholomeu de Gusmão devem ter visto uma gravura da “Passarola”, que mostra a suposta forma de seu balão. Devemos lembrar que em 1709 Bartholomeu escreveu um ensaio dirigido ao público em geral. No mesmo ano, um documento impresso mostrava tal gravura (uma cópia do qual encontra-se nos Arquivos do Vaticano, Fondo Bolognetti no. 16, pp. 69-72) e, aparentemente, dali foram feitas muitas cópias. É razoável assumir que muitos dos artigos escritos a respeito de suas experiências, conforme aparecerem em países de língua inglesa e alemã, mencionaram aquele ensaio, bem como a “Passarola”. Mas ela não poderia elevar-se aos ares, quanto mais carregando um homem, se levarmos em consideração as dimensões da “Passarola”, citadas no ensaio. Para aumentar ainda mais a controvérsia a respeito, em 1784 um Simão Tadeu Ferreira publicou o ensaio de Bartholomeu, e o datou de 1774! Mais ainda, o texto onde se explica o funcionamento da “Passarola” tem um estilo literário bastante diferente daquele usado em 1709, quando Bartholomeu escreveu o seu ensaio. Mais do que ajudar o inventor, a “Passarola” foi usada como prova pelos seus detratores de que Bartholomeu não poderia ter inventado o balão antes dos Montgolfier. Na verdade, há provas documentais de que Bartholomeu de Gusmão demonstrou, sem sombra de dúvida, que é possível elevar um balão aos ares usando ar quente, apesar de ter usado modelos em escala reduzida.

Após ter abruptamente encerrado suas experiências com balões, Bartholomeu de Gusmão continuou gozando dos privilégios do Rei, até que uma intriga na Corte, envolvendo até mesmo o Rei, trouxe sua desgraça. Em setembro de 1724, a Inquisição obteve denúncias de que o Rei havia sido enfeitiçado por duas mulheres, as quais, uma vez tendo perdido seu lugar na Corte, pretendiam para lá voltar. Após as inquirições usuais, o nome de Bartholomeu de Gusmão foi citado, como tendo se envolvido com uma daquelas mulheres. Não suportando ter sido injustamente envolvido na trama, ele fugiu de Lisboa na noite de 26 de setembro, em direção à Espanha. Ele veio a falecer na noite de 18/19 de novembro de 1724, no hospital de caridade de Toledo.

O Pe. Bartholomeu Lourenço de Gusmão, Pioneiro Brasileiro da Aeronáutica, encontra-se enterrado na Igreja de São Romão, Toledo, Espanha.

Bibliografia:

  1. HISTÓRIA GERAL DA AERONÁUTICA BRASILEIRA, Vol. 1, Ch. 4, pp. 66-111. INCAER. Rio de Janeiro, 1988.